É menos de uma hora de viagem, vindo de Hong Kong. Mas, o
desembarque no cais transporta o viajante para um outro mundo. Se a
ex-colônia inglesa é conhecida pelos imensos arranha-céus e um certo quê
de cidade futurista, Macau ainda é visto apenas como um exótico enclave
português na Ásia. Já dentro da barca é possível ver as pontes antigas e
as placas no idioma de Camões. A última flor do Lácio divide espaço com
os onipresentes kanjis — os caracteres chineses — de forma tão
harmônica que parece natural que seja assim. No desembarque o cheiro de
maresia lembra o clima de uma pequena cidade litorânea do nordeste
brasileiro. Não fosse o rosto chinês da funcionária da aduana,
poder-se-ia esperar a aparição de Gabriela Cravo e Canela em pessoa para
um aceno de boas-vindas. As placas, em português e chinês, deixam o
forasteiro ainda mais confuso e sem referências.
Do lado de fora, taxistas afoitos disputam os passageiros. Troca de
dinheiro? Pode ser de ienes japoneses para patacas. No ponto de ônibus,
um tanto de desleixo e carros tão antigos e surrados que não deixam a
dever em exotismo a nenhuma parada de interior do Brasil. As coisas
ficam mais confusas quando o coletivo chega: kanjis ilegíveis
para a grande maioria dos estrangeiros dividem a vista com nomes como
“Hotel Lisboa” e “Portas do Cerco”. Ruelas, construções, tudo colabora
para ativar a lembrança do viajante brasileiro que está há muito longe
de seu país de origem. Um muito de Portugal e, por conseqüência, de
Brasil que exala da paisagem faz de Macau um lugar mais que especial
para o mundo lusófono, um pequeno mundo português em plena China.
Como isso tudo foi parar ali?
Os brasileiros desconhecem Macau, assim como sabem pouco ou nada sobre o
Timor Leste e Goa (Índia), outras ex-colônias portuguesas na Ásia. Os
lusos começaram a desembarcar no local onde hoje fica a cidade em meados
do século XVI, cerca de 50 anos após sua chegada ao Brasil. Macau, por
sua posição estratégica, atuava como um entreposto entre a Índia, a
China e o Japão. Até 1573, a presença de portugueses no local era
tolerada embora não fosse legal. Mesmo assim, já havia diversos traços
da presença destes comerciantes europeus e, a partir daquele ano, o que o
governo chinês fez foi legalizar a presença dos entrepostos portugueses
e, claro, receber a sua parte em pesados impostos. Estava criado o
primeiro entreposto comercial europeu na Ásia.
A ex-colônia deve o seu nome à deusa do céu, A-má. O nome original —
Amagau, que significa Baía de A-má — foi sendo transformado até chegar a
forma atual, Macau. No século XVII, já completamente administrada pelos
portugueses, a cidade foi invadida pelos holandeses e, mesmo
despreparada, conseguiu resistir. Desde então, um governador diretamente
nomeado pelo governo português passou a dividir a administração da
cidade com o existente Leal Senado. Foi neste século, também, que Macau
recebeu seu exótico nome completo: Cidade do Santo Nome de Deus de
Macau, Não Há Outra Mais Leal. A razão para tanta pompa se deve ao fato
de que, mesmo durante o período em que Portugal esteve sob o domínio da
Coroa Espanhola, a cidade jamais baixou a bandeira portuguesa, ao
contrário do que ocorreu em todas as outras colônias.
Com a decadência do Império Chinês e a crescente influência inglesa
durante o século XIX, Macau perdeu gradativamente sua importância como
entreposto comercial. Portugal também via seu império decair,
principalmente depois da perda de sua mais importante colônia, o Brasil.
Temeroso em perder a soberania de Macau, o governo português decidiu,
finalmente, acabar com o poder do Leal Senado e centralizar a
administração nas mãos do governador. Além disso, foi paulatinamente
reforçando as defesas, ocupando as áreas ao norte e as ilhas de Coloane e
Taipa até que, finalmente, aboliu o pagamento de impostos aos mandarins
chineses. Em 1887, o governo português forçou o enfraquecido governo
imperial da China a assinar um tratado que garantia a ocupação perpétua
da região por Portugal e outros detalhes de seu interesse. Macau,
estava, enfim, sob o completo domínio português.
E os chineses?
Como pode-se imaginar, a população chinesa de Macau não aceitou de bom
grado a presença de portugueses no território. Afinal, como ocorreu no
Brasil, as terras da cidade tinham moradores antes da chegada dos
europeus e, portanto, estes seriam os “donos da terra”. Porém, as
tensões entre portugueses e chineses só ganharam grandes dimensões
durante a Segunda Guerra Mundial quando a China foi ocupada pelos
japoneses e o governo de Portugal acusado de ser conivente por aceitar
uma embaixada do Japão em seu território. A tal embaixada agia como
centro de espionagem de dissidentes. Durante a Revolução Maoísta na
China, os rebeldes comunistas se insurgiram contra a administração
portuguesa e, em dezembro de 1966, ocorreu o Motim 1-2-3. Na ocasião,
grupos populares liderados por rebeldes defensores da Revolução Maoísta
se amotinaram contra o governo de Macau. Apesar de o motim ter sido
controlado, a situação na colônia era de instabilidade e muitos
portugueses abandonaram a cidade. Os chineses locais adotaram a política
dos três-nãos: não pagar impostos, não fornecer serviços públicos aos
portugueses e seus descendentes e não vender produtos a eles.
Finalmente, o governo macaense acatou as reivindicações da comunidade
chinesa e assinou um acordo renunciando à ocupação perpétua de Macau.
A Revolução dos Cravos que abalou Portugal em 1974 designou a
independência imediata de todos as colônias portuguesas ainda
existentes. Porém, o governo comunista chinês não aceitou a
transferência imediata de Macau e apelou para uma passagem gradual.
Finalmente, em 1999, a cidade passou ao controle chinês e hoje é
considerada uma Região Administrativa Especial (RAE) que mantém um
governo próprio, com emissão de vistos e passaportes e outros
procedimentos administrativos independentes das decisões de Beijing.
O que fazer em Macau?
Macau possui o mais belo conjunto arquitetônico europeu do Sudeste da
Ásia e só isso já vale a visita ao pequeno enclave. A RAE é formada por
quatro regiões: Macau, uma península no continente e o complexo insular
dividido em Taipa, Cotai e Coloane. No passado, Taipa e Coloane eram
duas ilhas que foram unidas por um aterro que ficou recebeu o nome de
Cotai. No continente fica a área que foi transformada em Patrimônio
Histórico Mundial, onde se localiza o mais famoso sítio histórico de
Macau, as ruínas da Igreja da Madre de Deus mais conhecida como Igreja
de São Paulo. Atualmente, existe apenas a escadaria e a parte frontal da
construção, a qual é considerada uma das mais raras peças
arquitetônicas da Ásia. Com 23 metros de largura e 25,5 de altura, a
fachada de granito exibe uma harmônica mistura de influências européias e
asiáticas, em seu estilo maneirista/barroco com pitadas de outras
escolas estéticas. A fachada foi construída em cinco níveis relacionados
aos cinco passos da divina ascensão. Mesmo quem vai sem muitas
informações consegue notar a riqueza da decoração da construção, talhada
por cristãos exilados japoneses no século XV e que mostra imagens
bíblicas, representações mitológicas, crisântemos japoneses, leões
chineses dentre outras referências.
Outro local bastante visitado é o já citado Templo de A-Má, a deusa do
céu. Assim como a Igreja de São Paulo, o complexo é marcado pela
variedade de estilos e influências. No local há cinco pavilhões cercado
de áreas verdes, cada um reservado ao culto de uma divindade, mostrando a
tolerância entre as crenças budistas, confucionistas e outras. As cinco
estruturas foram construídas em épocas distintas e a mais antiga data
de 1488, tendo a configuração atual sido finalizada em 1828.
Com a transformação em Patrimônio Histórico Mundial, o Centro Histórico
foi restaurando e está tinindo de novo, com uma vida agitada, sobretudo
por causa dos turistas. Na época do Natal, costuma haver missa, cantata e
outros rituais católicos que atraem não somente os fiéis, mas pessoas
de outras religiões. É possível visitar a área em um passeio a pé de um
dia. Basta disposição para subir ladeiras. No belo Largo do Senado —
cercado de prédios históricos e todo em pedra portuguesa, a mesma que
tornou famosas as ruas de Copacabana, no Rio de Janeiro — há um
escritório de informações turísticas onde se pode obter um mapa com as
melhores rotas para o passeio a pé pelos prédios antigos.
Andar nas Ruas da Felicidade ou nas Avenidas Almeida Ribeiro e Horta e
Costa é um convite à gastronomia chinesa popular. São doces, petiscos e
outros alimentos que parecem estranhos ao olhos dos ocidentais, mas são
deliciosos. Além disso, é possível provar coisas exóticas como barbatana
de tubarão. Os vendedores são generosos na prova, mas eles ficam
visualmente desapontados quando o cliente não leva nada. Outra
oportunidade bacana é a de ter acesso a frutas com sabor tropical por um
preço baixo. Laranjas, bananas e outras frutas são vendidas em
quitandas muito parecidas com as brasileiras. Macau também pode ser um
paraíso para os que apreciam comida portuguesa. Há vários restaurantes
onde se pode comer e beber à lusitana, sem gastar muito. Até restaurante
brasileiro há no local. Chama-se Yes, Brasil e fica na Travessa da
Fortuna, próximo as ruínas da Igreja de São Paulo. A reportagem, porém,
não pôde provar o sabor da comida da goiana radicada em Macau há mais de
10 anos porque a casa estava fechada para o feriado natalino.
O jogo
Macau vem sofrendo grandes transformações desde que saiu do controle
português para o chinês. Vê-se isso claramente na paisagem. Além da
revitalização do centro histórico, a região vem investindo pesado na
indústria do jogo para atrair visitantes. A maioria das grandes
construções em andamento na cidade é de futuros cassinos, todos eles
tentando arrancar do outro os títulos de maior ou mais famoso ou mais
lucrativo da Ásia. Porém, o de mais tradicional é, e ninguém tira, do
Cassino Lisboa. Apesar de toda a pompa, os clientes, em sua maioria
novos ricos da China e de Hong Kong, começam a se bandear para os lados
dos empreendimentos recentes como o Sands que traz o know-how
da indústria de Las Vegas. A mais recente novidade é o The Venetian
Macao Resort Hotel que já é considerado o maior cassino da Ásia. Como o
nome já diz, além do jogo, o cliente encontra outros serviços, como
estadia e shows. Recentemente, apresentaram-se por lá o Black Eyed Peas e
a cantora Beyoncé. São cerca de 3000 quartos, 840 mesas de jogo e 3400
máquinas. Tudo isso assistido por mais de 16000 funcionários. Para
apostar, os clientes precisam ser maiores de 18 anos. Os cassinos são
equipados com caixas eletrônicos e outras facilidades para quem precisa
ter dinheiro sempre a mão.
Compras
Macau é um excelente local para compras. Os produtos locais com melhor
custo benefício são as roupas. A região possui muitas confecções que
produzem, principalmente, para exportação. Por isso, os preços são
baixos se comparados aos do Japão, por exemplo, e tamanhos grandes são
mais facilmente encontrados. As melhores lojas são encontradas nas ruas
no entorno do Largo do Senado.
Para os colecionadores e compradores de antigüidades, há algumas boas
opções. De lojas de mobílias chinesas até mercados de rua, vende-se de
tudo. Esse tipo de comércio pode ser encontrado próximo às Ruínas de São
Paulo. Já os vendedores de rua estão em toda parte do Centro Histórico,
principalmente na área ao redor das ruínas que se conecta com a ruas
Santo Antônio, São Paulo e das Estalagens. Vinhos e produtos portugueses
também podem ser encontrados em Macau por um preço bastante razoável.
A moeda local é a pataca que tem mais ou menos o valor do dólar de Hong
Kong. Uma coisa interessante é que os locais se referem ao dinheiro como
“Macau dollar” (dólar de Macau). Apesar do valor numericamente
semelhante, ao comprar produtos com o dólar de Hong Kong, o turista está
pagando um pouco mais caro por eles. Isso porque os vendedores usam um
câmbio informal de 1 para 1, quando a moeda da ex-colônia inglesa é
muito mais forte. Portanto, cuidado nas compras e, principalmente, não
deixe a cidade com muito dinheiro local porque o câmbio fora da região é
difícil e desvantajoso.
O governo local dá uma dica aos turistas: não aceite indicações de
taxistas ou de pessoas no aeroporto ou no terminal de barcas de locais
onde se ofereçam produtos com desconto a estrangeiros. Em geral, são
promoções-fantasmas ou produtos de origem duvidosa. Procure sempre as
lojas nas áreas comerciais, onde você possa ver outros clientes
comprando.
Outras dicas
Apesar da belíssima costa, Macau não é um destino muito procurado para
quem gosta de praias. Porém, há duas praias em Coloane para quem não
abre mão de uma refrescadinha. Cheoc Van é uma pequena e charmosa praia
freqüentada por locais e estrangeiros. Além desta, há a de Hac Sa, pouco
conhecida, principalmente por causa da água escura, que não é
convidativa.
No mais, apesar de todas a história que conecta Macau e Portugal, não se
deixe levar pela abundância de placas escritas em português. De fato, a
língua é uma das oficiais da cidade e documentos, avisos e tudo o mais
deve ser escrito no idioma luso e em cantonês. Porém, estima-se que
apenas 1% da população seja de descendência portuguesa e, portanto, fale
dos ancestrais. Nos serviços públicos é mais fácil de encontrar gente
fale português. Aliás, o número de falantes de inglês na população local
também é bastante pequeno. Porém, é possível se localizar com
facilidade por causa das placas escritas no idioma de Camões.
A Doci Papiaçam de Macau
Diferente do que ocorreu no Brasil, a ocupação portuguesa de Macau não
fez com que o português se tornasse uma língua falada entre a população
originária local. Porém, o contato entre portugueses e chineses deu
origem a um dialeto que ficou conhecido como patuá ou crioulo de Macau.
Crioulo é o nome que se dá aos idiomas que nascem do contato entre duas
outras línguas, em especial àqueles formados no período das
colonizações européias na África e na Ásia. Os crioulos são erroneamente
considerados como um modo incorreto de falar a língua européia adotado
pelos nativos das áreas colonizadas ou os descendentes mestiços dos
colonizadores. A palavra “patuá”, por exemplo, vem do francês patois que significa “língua rude”. No entanto, os lingüistas atribuem imenso valor cultural a esses dialetos e línguas.
O patuá de Macau teve origem no século XVI e tem influências de diversas
línguas além do português, do mandarim e do cantonês. Era usado como
meio de contato entre os navegadores portugueses e a população local.
Gramaticalmente simplificada, a língua foi se desenvolvendo e
conquistando adeptos que a achavam mais funcional e fácil de entender
que o português ou o chinês, por exemplo.
Os estudiosos dividem a história do patuá de Macau em duas épocas: a
arcaica, até o século XIX e a moderna, existente até hoje. Apesar de sua
popularidade entre os macaenses e os comerciantes chineses, o patuá não
tinha status de língua na época de seu apogeu, no século XIX. As
autoridades portuguesas não reconheceram o patuá oficialmente e, por
isso mesmo, a população usava a língua em oposição aos poderosos. Porém,
os registros escritos são poucos e o único literato a usar o patuá foi
José dos Santos Ferreira, o Adé, o qual escreveu, inclusive, uma
gramática da língua.
Atualmente, a doci papiaçam de Macau está em vias de extinção.
Em Macau, apenas os mestiços macaenses mais velhos falam a língua. Há
falantes de patuá em outras áreas de alta imigração de macaenses,
inclusive no Brasil. Porém, há estimativas de que o número total de
falantes não passe 8 mil. Estudiosos e amantes da língua estão tentando
transformar o patuá em Patrimônio Imaterial da Humanidade, uma forma de
salvar a língua da extinção.
Poema em patuá e sua tradução para o português
Língu di gente antigo di Macau
Lô disparecê tamên. Qui saiám!
Nga dia, mas quanto áno,
Quiança lô priguntá co pai-mai
Qui cuza sä afinal
Dóci papiaçam di Macau?
A língua da gente antiga de Macau
Vai desaparecer também. Que pena!
Um dia daqui a alguns anos
A criança perguntará aos pais
O que é afinal
A "língua doce" de Macau?
adorei Macau - escrevi este texto com algumas impressões pós-viagem - pena que tão pouca gente fale a doci papiaçam hoje - mas quem sabe essa tendência não muda - escrevi rapidamente sobre a procura de raízes macaenses dos eurasianos de Cingapura aqui - e sobre identidade goesa na internet aqui - às vezes a TV Brasil reprisa o Além-Mar, série que traz imagens e reflexões sobre esses lugares todos
Hermano Vianna · Rio de Janeiro, RJ 5/10/2008 22:50Eu li o seu texto sobre Macau antes de viajar. Eu sempre, desde pequeno, quis conhecer Macau. Ficava vendo nos livros de geografia e imaginando o que era falar português na China. Também tenho vontade de conhecer Goa.
Roberto Maxwell · Japão , WW 7/10/2008 11:11Lembrei de um documentário maravilhoso chamado Língua, vidas em português, sobre pessoas e países que falam português. No documentário tem um pouco de Goa. A mistura Índia / Portugal ficou bem baiana, achei. heheh
Ilhandarilha · Vitória, ES 7/10/2008 12:11Esse filme é realmente um dos que eu mais gosto!
Roberto Maxwell · Japão , WW 7/10/2008 12:12
Muito interessante o seu texto. Gostei também das imagens.
Sucesso.
Votado.
Que legal que vc já viu o Língua. Ele é muito bom mesmo. Tentei achar o dvd para comprar, pq é uma ótima referência para o meu projeto, mas não achei. quem souber o paradeiro do filme, me fala, por favor!
Ilhandarilha · Vitória, ES 7/10/2008 20:51Para comentar é preciso estar logado no site. Faça primeiro seu login ou registre-se no Overmundo, e adicione seus comentários em seguida.
Em ritmo de folia, mas sem perder o passo das boas novidades, entraram no ar esta semana três mudanças algo significativas no mecanismo do... +leia
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