MÁRIO MOURA Nasceu na Ribeira Grande, Ilha de São Miguel (Açores), em 1957. Reside nessa Cidade, onde exerce as funções de Chefe de Divisão de Ação Sociocultural da Câmara local. Estudou em França e nos Estados Unidos da América do Norte e lecionou no ensino secundário e universitário. Licenciou-se em História (Via Científica), no Rhode Island College, EUA, em 1983, tendo obtido equivalência, na Universidade dos Açores, em 1984. Mestre em Museologia e Património desde 1997, pela Universidade Nova Lisboa.
É membro da Phi Alpha Theta, Associação de Historiadores norte-americanos e países anglófonos, do I.C.O.M., da A.P.O.M. e da APA: Associação Profissional de Arqueologia.
Ganhou o Lullac Award (prémio para alunos norte-americanos), uma bolsa de estudos na Brown University, EUA, em 1983, uma Bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian - 1995 (programa de estudo em Espanha e Mértola) e recebeu um voto de louvor da Assembleia Municipal da Ribeira Grande pelo estudo, recolha e exposição do espólio cultural do concelho em 1986.
Medalha de Mérito Cultural – Junta de Freguesia de Matriz Ribeira Grande -, Setembro de 2008.
Outros livros publicados pelo autor:
Arcano da Ribeira Grande, (1999).
Memórias do presépio da Ribeira Grande, (1996).
Memórias dos Moinhos da Ribeira Grande: um percurso terrestre à terra dos moinhos de água, (1997).
A “Mã” da água, a “santinha” e a água que dorme: acessos à mentalidade dos moleiros da Ribeira Grande, (1999).
Casos Falantes: azulejos de corda seca e de aresta das terras do ex-mosteiro de Jesus da Ribeira Grande, (1998).
Andanças dos Irmãos Botelho (2006)
Nascimento de uma Paróquia (2009)
A Freira do Arcano, Margarida Isabel do Apocalipse” ed. Publiçor, Ponta Delgada, Açores (2010).
É Presença habitual dos Colóquios da Lusofonia (Encontros Açorianos)
Tema 2.7. Cinco vidas, esboços de retratos. Mário Moura, Diretor Casada Cultura, Câmara Municipal da Ribeira Grande Açores <mariomoura57@gmail.com>
Por que razão me dediquei a estes cinco? Por que razão as sociedades recordam?
Sejamos francos, as comunidades devem eleger entre os seus cidadãos aqueles cuja memória querem perpetuar em ruas, praças, estátuas, edifícios, bibliotecas, museus, escolas. Não se tratará, a meu ver, de um exercício de canonização cívica em virtude de santidade, se fosse esse o requisito, certamente muitas das nossas ruas, escolas, praças e estátuas permaneceriam desgraçadamente anónimas, mas sim de homenagem.
No caso concreto destas cinco pessoas, que viveram entre nós, mais do que se justifica os esboços biográficos ou retratos suaves.
Não só para alimentar a natural, lícita e humana vaidade dos seus descendentes, mas, do ponto de vista da comunidade, sobretudo para fortalecer o sentido comunitário dos atuais e futuros cidadãos deste burgo.
A sua eleição reflete o que pensa quem os elegeu, e neste caso, repito, destaca-se o seu elevado espírito de maturidade cívica. Todos os cinco homenageados tiveram ao longo da sua vida, ou parte substancial dela, uma ligação muito forte e por vezes umbilical à Ribeira Grande, palco do seu sentir e agir. Até mesmo no caso do Dr. Edmundo, ainda que fosse necessário os seus antigos e devotados alunos lhe perpetuarem o nome no orfeão que ostenta o seu nome para que a terra despertasse para ele, ainda antes de a terra perceber e reconhecer a importância e a dimensão deste seu filho, ele sempre sentiu e aceitou a incontornável força telúrica das suas raízes: ‘Lá, vai haver festa!’ Terá ele dito, pouco antes de expirar.
Razões imediatas do título que escolhi e da escolha deste trabalho para o Congresso de Lusofonia em Bragança?
Já tinha escrito e apresentado este texto quando a dezoito de julho de 2010 encontrei o ‘Brief Lives’ de W. F. Deedes numa livraria de Londres.
Coincidências? Sim: a primeira edição é de 2004, a segunda, esta que tenho, é de 2005. E, no entanto, só conheci o ‘Brief Lives’ quando o comprei agora.
O que tem o ‘Brief Lives’ a ver com as ‘Cinco Vidas’?
Cobicei logo o título mal o vi, e tanto assim foi que andei de roda, de roda para trocar o título que dera ao meu trabalho por um que fosse idêntico ou se aproximasse do de Deedes. Não estando cem por cento convencido de o ter conseguido, creio que o de ‘Cinco Vidas’ se aproximará. O que me levou a fazê-lo? Sei que o decidi ao sair de uma estação do ‘tube’ (metro) de Londres, não me lembro qual, sei igualmente que a ideia me veio à cabeça ao subir as escadas em direção à rua e que a ideia me agradou. Talvez tenha decidido trocar para me dar este gosto.
Honra, muita honra, mas também muita responsabilidade por ter de esboçar a traços forçosamente largos algo substancial do percurso de cinco pessoas que se cruzaram em vida nesta terra. É um desafio. Nem sequer devo queixar-me do tempo que me foi concedido para investigar, escrever e apresentar este trabalho, pois poderia sempre, rei e senhor do meu trabalho, ajeitá-lo como o ajeitei às circunstâncias.
Dediquei-me, com entusiasmo, à tarefa, por várias razões: a primeira, por gostar dos cinco homenageados; a segunda, por reconhecer a importância em revelar o trabalho de um poeta, de um político, de um empresário, de um médico, de um amante das artes, de um músico; e, por fim, última das razões, para mim tão importante como as duas primeiras, para arejar a cabeça e exercer o meu ofício.
No momento em que aceitei esta tarefa, lembro-me de me ter lembrado do pequeno, magnífico trabalho de Daniel de Sá saído na edição especial da elevação a Cidade no Correio dos Açores de há vinte e nove anos. Aí, Daniel de Sá fala com emoção dos construtores esquecidos, dos que fazem as coisas e não são lembrados, sem os quais, deem-se as voltas que se derem, pouco ou nada do que agora se vê estaria aqui para se ver.
Depois, como que presa à primeira recordação, uma fez vir à tona de água do mar da memória a outra, acudiu-me à mente, como quase sempre sucede quando tenho algo de semelhante entre mãos, o magnífico enredo do filme ‘O Mundo a Seus Pés’ de Orson Welles. Pode dizer-se que é assim e não estaremos muito longe do fundo da mensagem: ao morrer, o ilustre cidadão Kane, magnata da imprensa norte-americana, para espanto de todos os que o julgavam conhecer bem, afinal, revela-se um ilustre desconhecido para familiares, amigos, antigos amores e ódios antigos, indiferentes ou inimigos.
Não me atrevo a dizer que irei mais fundo no conhecimento destes cinco porque: ‘Naturalmente, ninguém pode retratar o homem no seu todo, podemos apenas recolher vislumbres da mente do indivíduo, juntar os indícios e desenhar o esboço de uma vida num esforço para representar o caráter e a essência de uma pessoa.’[1]
I. Ezequiel Moreira da Silva: o Senhor Vila-Cidade[2]
‘Ezequiel, mais valia teres deixado o chapéu em casa!’ Maria Isabel não podia com tanto cumprimento, mas não teve outro remédio senão resignar-se. Pela vida fora, nunca em dias de sua vida por mais que tentasse iria conseguir mudar aquele costume de Ezequiel. No fundo, estou em crer, que o faria num tom que denunciava uma certa cumplicidade de casal antigo que se dá bem.
Homem cortês à moda antiga, sociável até ao tutano, cumprimentava todos os que se cruzassem com ele na rua: ricos ou pobres, velhos ou novos, homens ou mulheres, da terra ou de fora da terra. Com uma exceção apenas, não cumprimentava o culpado pela sua prisão. E pouco mais.
A bem dizer Ezequiel não tirava o chapéu, num gesto delicado, descobria ligeiramente a parte de trás do chapéu que cobria a nuca. A não ser a Deus ou a algum dos seus representantes na Terra, um homem da sua condição social não tirava por completo o chapéu da cabeça, apenas levantava o chapéu, só um homem do povo tirava o chapéu por completo.
Creio nunca ter falado com ele, tenho a certeza de nunca ter falado com ele, e tenho pena disso, posso estar no entanto enganado, dizem-me que se pelava por uma boa conversa, quando muito, tê-lo-ei visto uma ou outra vez, se não estou a caldear memórias, sentado debaixo de uma latada no balcão da sua torre voltado para a rua do Ouvidor. Isto só pode ter acontecido, estou a puxar pela memória de novo, quando ia com minha avó Deodata a casa das priminhas dos Foros. Ou à fábrica comprar sumo de maracujá? À fábrica não, não poderia ser. Não o poderia ver na torre quando ia à fábrica porque a fábrica ficava para o outro lado, para a banda da canada da Palha. Boa tarde, Senhor Ezequiel, saudava minha avó. Boa tarde, Senhora Deodata, retribuía o Senhor Ezequiel.
Sempre ouvi falar dele, em privado ou em público, com todo o respeito devido a um homem que merece respeito. Era ‘um homem ativo e muito esperto’, diz-se ainda à boca cheia. Sobretudo dos da minha geração para cima. Falava com velhos e novos, ricos e pobres, dizem-me outros. Alguns afiançam mesmo que era um patrão austero. Outros: que era um patrão como não haveria outro. No entanto, quem terá sido ele? Naturalmente, como todos nós, terá sido isso tudo e muito mais. Ou algo menos. Como sempre, há algo em nós que nos escapa e escapa aos outros.
Mas o que importa para o caso deste retrato é que ele foi um homem que deixou às gerações vindouras um legado de amor arreigado à Terra. Enquanto houver Ribeira Grande, a sua memória, tal como diz Jorge Luís Borges, para a memória das pessoas acerca de outras pessoas, Ezequiel estará vivo entre nós.
Coisas que nos levam a responder à pergunta: Quem foi este Homem?
A mãe, Diamantina Adelaide Tavares Moreira deu à luz por volta da uma hora da manhã do dia dezassete de Agosto um filho, que viria a ser filho único, que tomou o nome do pai: Ezequiel. O nome completo do pai era Ezequiel Augusto Lopes da Silva.
Diamantina nascera na freguesia de São Pedro, a poente da da Conceição, e era, como consta do assento de batismo do filho assinado pelo Padre Egas Moniz, ‘ocupada no governo doméstico.’ O marido, natural da Conceição, exercia as funções de ‘chefe da estação Telegrapho-Postal’ da Ribeira Grande, à altura sediada na rua de São Francisco 53-55.
Fiado no mesmo assento de batismo do filho, recorrendo porém agora nesta interpretação a um outro documento, o rol quaresmal do ano de 1893 da paróquia da Conceição, a criança terá nascido em uma casa da rua de São Francisco.[3] No entanto, não é seguro localizá-la, primeiro porque não vem aí indicado o número de polícia, segundo, para semear mais confusão, nos róis quaresmais, à frente do nome da rua de São Francisco surge quase sempre entre parêntesis também o topónimo Cabo da Vila. Onde ficava naquela rua exatamente a casa onde nasceu Ezequiel? Não sabemos ao certo.
II. Manuel Barbosa:[4] Um Pedagogo e um Homem vertical, ou o Homem do Chapéu Verde?
O abraço
Por ocasião da presidência aberta do Dr. Mário Soares nos Açores, alguém desceu a escadaria da igreja Matriz de Nossa Senhora da Estrela e abraçou Manuel Barbosa. Quem terá sido? Alguém da comitiva presidencial que o conhecia? Não. Foi o próprio Presidente da República: o Dr. Mário Soares. Manuel Barbosa encontrava-se então de passagem pela Ribeira Grande.
Como explicar o gesto, se um era comunista e o outro socialista? Talvez Mário Soares o tenha feito para se solidarizar com um antigo resistente ao regime de Salazar. Talvez o tenha feito ainda porque soube que lutava contra um cancro. Talvez tenha sido um gesto magnânimo do vencedor da cruzada da Fonte Luminosa contra o partido comunista português. O partido de Manuel Barbosa. Se assim foi, e ninguém consegue entrar na cabeça de ninguém, por que razão Manuel Barbosa se deixou abraçar? Não sei. O que sei foi o que vi com os meus próprios olhos, o meu filho estava a meu lado, eu era o cicerone do Presidente, Manuel Barbosa não conteve a emoção. Como de costume.
Como soubera da presença de Manuel Barbosa? Como soubera quem era Manuel Barbosa? Fora alertado pelo jornalista António Valdemar, antigo aluno e amigo de Manuel Barbosa. Muito a seu jeito, num gesto de perfeito cavalheiro, desce os vários lanços da monumental escadaria da Matriz e envolve-o num significativo abraço.
Já atingido pela doença que não perdoa, nem escolhe idades, nem estatuto, repito, eu vi com os meus próprios olhos, Manuel Barbosa não contém a emoção: chora.
Homem de Chapéu Verde? Sim, soube depois, era assim que a PIDE o conhecia sem, contudo, felizmente para Manuel Barbosa, associar o nome ao chapéu.
Como o via
De primeiro, via-o apenas ao longe, não frequentei o ‘seu’ Externato, muito mais tarde, conheci-o de outra forma: através de uma longa e interessante entrevista que me concedeu em 1983. Via-o passar na rua Direita em direção aos Frades e dos Frades de volta à sua casa na rua das Pedras, usando passos largos, quase marciais, de fronte levantada, cigarro em punho, sobraçando orgulhosamente para quem quisesse ver o ‘Avante’. De modo desafiador. Não se detinha a ver montras nem entrava em cafés: fazia-o por regra à noite. Conheci-o também no Teatro, onde foi homenageado em 2004, local onde parece ter ganho nova vida no primeiro comício após o dia 25 de Abril de 1974.
Gosto de meditar nas suas palavras escritas em 1988 nas Memórias da Cidade Futura: ‘a Ribeira Grande não tem cultura de cidade (...) não tem jornais nem livrarias, nem grupos de teatro, nem biblioteca pública, nem centros de recreio e convívio (...) (Todavia) progrediu notavelmente nesta segunda metade do século e está hoje lançada no caminho de adquirir ou aperfeiçoar os atributos de cidade (...).’
III. Jorge de Melo Gamboa de Vasconcelos: Um Médico de Homens e do Património
Eu e ele
Conheci-o em circunstâncias pouco abonatórias, humilhantes até. Conto o episódio em traços largos: havia de andar pelos meus doze, treze anos, e abrasado por uma febre teimosamente alta, minha mãe pede os bons ofícios do Dr. Jorge. Chega o Dr. Jorge com a sua, para mim, sinistra pasta de couro preto, entra no quarto, ausculta-me, apalpa-me o pulso, observa-me a língua, os olhos, os ouvidos, sempre fora o médico da família, volta-se para a minha mãe e diz calmamente com a sua voz quase impercetível: ‘Vou dar-lhe uma injeção.’ Sendo as injeções um dos meus dois terrores inconfessos, o outro escuso de o confessar, escorrendo suores frios, de cabeça perdida, pulei da cama, corri como louco pelo corredor fora, abri num ai a porta do balcão e lancei-me, sem um ai, nem mal de espécie alguma, para o quintal. Felizmente, aterrara numa moita de jarros. Desatinada, envergonhada e aflita, sem saber se o filho estaria inteiro ou desfeito aos pedaços, minha mãe corre ao quintal, agarra-me, certifica-se de que não tenho nenhum osso partido, dá-me uns beliscões bem dados, dos que ainda hoje sinto quando o tempo está do lado da Lagoa do Fogo, e leva-me à presença do Dr. Jorge. De seringa em riste, talvez a maior seringa do seu lote, o Dr. Jorge aguarda impassível ao lado da cama deserta. Diz: ‘Não se preocupe, são coisas de criança.’ Levei a dita cuja, e se me passou a dor passadas umas longas horas, ainda não me passou a dor mais forte do vexame.
Vale das Sombras
Pouco antes de dirigir-se ao Vale das Sombras, como descreve poeticamente a Bíblia o local onde vão os vivos quando morrem, trôpego, subiu a custo pela última vez a escadaria do edifício dos Paços do Concelho: enviara ao Presidente um bilhete escrito pelo seu punho com caligrafia bonita, não as garatujas habituais das suas receitas, em que dizia: queria ver o projeto da ampliação do Teatro. Parece que o terá aprovado. Falecidos em 1974 Ezequiel Moreira da Silva e Manuel Barbosa em 1991, a sua opinião fazia lei. Fora um velhote de passo curto mas firme e constante, quase sempre ríspido, às vezes doce, de voz suave mas severa, intransigente, irredutível, avesso à mediocridade. Tinha um jeito desajeitado de demonstrar afeto. Dizem.
Na noite do segundo dia do último semestre de 1995, Jorge exalou o seu último sopro de vida na casa da rua do Frias, n.º 48, em Ponta Delgada. Era a sua segunda residência. Ao fim da manhã do dia seguinte, após o corpo ter estado exposto em câmara ardente na ermida de Santana, levaram-no ao Jazigo da família Raposo do Amaral no Cemitério de São Joaquim. Resistira ainda a um derrame cerebral. Havia-lhe sido diagnosticado, conta D. Luísa Tavares, sua filha, ureia em alto grau, esteve a fazer exames na Clínica do Bom Jesus, aí terá permanecido uns dois dias. Já não reconhecia ninguém, nem sequer sabia onde estava. Desatinava. Impressionante! O fim triste de alguém que fora brilhante. Foi uma dura provação para a filha que a tudo assistiu. Apagou-se.[5] Já há alguns anos não conduzia. Terá dito, no meio do seu doloroso delírio, que desejava regressar à casa da sua meninice. Aí aguardava-o há três anos no cemitério a esposa Maria Eugénia. Maria Eugénia havia falecido a dezoito de Fevereiro de 1992. O octogenário vira talvez (não há a certeza nem quanto à rua nem quanto à casa exatas) a luz do mundo pela primeira vez na rua do Tornino de Baixo, na freguesia do Apóstolo São Pedro, hoje rua Madre Teresa da Anunciada. Não é de excluir a possibilidade de que tenha nascido no n.º 66, quatro casas abaixo da casa onde nasceu Madre Teresa da Anunciada.
IV. Manuel Joaquim da Silva Costa Leite: o Pai dos lavradores de São Miguel[6]
‘O senhor é que está bem!’ Virava-se para mim enquanto o café não chegava à mesa do Café Central. Não fazia nada para disfarçar o seu sorriso meio-irónico a irónico de gozo. Passava de um a outro registo com a facilidade com que as nuvens cobrem ou descobrem a boca da Lagoa do Fogo.
Não dispensava um dedo inteiro de conversa aos Domingos e dias feriados no Café Central quando ia levantar o jornal Expresso que assinava. Nos dias comuns da semana, apenas meio dedo de conversa. Um homem de poucas mas acertadas palavras. Um homem honrado. A sua obra salta à vista de todos: se a Ribeira Grande é dos maiores concelhos industriais a ele o deve. Aprendi com ele a respeitar e admirar o trabalho de empresário.
Notas esparsas: cá e lá
Acelerava a motorizada da sua casa na rua das Freiras pela calçada da Pólvora acima em direção à Lacto Açoriana. Passados anos de muito esforço e total dedicação viria a ser uma das maiores fábricas de laticínios do país. A subida era suave, ainda assim exigia esforço à máquina de pequena cilindrada, esforço a que ele, apesar dos seus vinte e cinco anos, também estava habituado desde tenra idade.
Ia de bicicleta namorar Élia à aldeia de Sandiães, freguesia de Rôge. Seriam ainda umas boas duas horas de caminho, diz-me D. Élia. Conheceram-se pela Senhora da Laje e viam-se por festas e feiras das cercanias. Namoraram dois anos e casaram-se num dia de Reis na igreja de Rôge. Élia Marques de Almeida, mais nova apenas três meses, e Manuel teriam vinte e quatro anos. Manuel Joaquim nascera na remota freguesia de Castelões, no Concelho de Vale de Cambra, Distrito de Aveiro, mas cedo, segundo a esposa, mudara-se com os pais para Lordelo. Aí terá feito a escola primária. Manuel era filho de Francisco Costa Leite e de Luciana Joaquina Costa Leite. Os pais exploravam uma fabriqueta de manteiga em Lordelo. Élia era filha de José Soares de Almeida e de Isabelina Marques de Almeida. Exploravam, em Sandiães, também uma fabriqueta de manteiga e mantinham ainda uma mercearia de porta aberta.
Costa Leite chegara à Ribeira Grande uns escassos dois meses antes de Manuel Barbosa, em Abril de 1948. Não trazia a jovem esposa nem o filho Victor de sete meses, nascido a um de Setembro de 1947, nem tão-pouco nenhum canudo universitário, trazia o saber feito de várias gerações de fabricantes de manteiga, a instrução primária, e uma vontade indómita de vencer na vida. Havia ainda ponderado fixar-se em Espanha. Felizmente que optou por se fixar na Ribeira Grande. ‘Senhor Costa Leite, tu és o pai dos lavradores da ilha de São Miguel.’ Dizia um quadro pendurado num Posto de recolha de leite na costa Sul da Ilha de São Miguel.
A fábrica arranca no dia um de Setembro de 1948. Hoje ostenta o nome de Fromagerie Bell. [2010: Bel] O nome completo do motociclista era Manuel Joaquim da Silva Costa Leite. Nascera às portas do Verão habitualmente quente do continente, a vinte e um de Junho de 1922 e entregou a alma ao Criador, após muito padecimento, no Hospital do Divino Espírito Santo, num dia sombrio e fresco do Outono ilhéu, a vinte e um de Outubro de 2001. O seu corpo esteve em câmara ardente na ermida de Nossa Senhora do Rosário: passagem obrigatória a caminho da sua fábrica. Após o que, a urna seguiu para o aeroporto de Ponta Delgada com destino à cidade de Lisboa, e daí seguiu em carro funerário para Vale de Cambra. Foi a sepultar à sua terra natal. Havia sido operado ao coração e era diabético. Ia resistindo com bravura. Todavia, já hospitalizado, a pneumonia fulminante abrira-lhe as portas a todo o tipo de complicações, o organismo debilitado não resistiu a tanto. Houve quem, por o sentir um dos nossos, não se conformasse com a escolha da sua última morada. Mas, estou em crer, o Sr. Costa Leite terá o corpo lá e o coração cá. A esposa dera-lhe outros dois filhos: Élia e Jorge, ambos fuseiros de gema: Élia em 1951, cinco dias depois da festa de Nossa Senhora da Estrela, Jorge, meu colega dos tempos do fraldário e das andanças dos States, em 1957, no dia em que os franceses celebram a tomada da Bastilha. Não tinha canudo mas deu canudo aos filhos que o desejaram.
V. Edmundo Manuel Garcia Machado d’Oliveira: a música na alma e a história no pensamento
Minha avó Deodata e a mãe dele, vizinhas de Santo André, tratavam-se por primas. Não era que fossem primas, isto devia-se ao facto, diz-me minha tia Natália, de minha avó ser afilhada da avó dele. Meu pai e meus tios tratavam-no por primo. Só há pouco soube que não éramos primos verdadeiros. Senti pena. Mas, no meu íntimo, e à moda antiga, será sempre meu primo.
‘Lá, vai haver festa!’ Ouviu-o dizer distintamente a esposa pouco antes de expirar a onze de Agosto de 1982.[7] Estava em Almada, bem longe da sua querida terra de berço. Dali a nada seria o Santíssimo Salvador do Mundo na Ribeirinha e o quinze de Agosto nas Caldeiras. Este ‘lá, vai haver festa!’, reflete toda a sua mágoa. Não teve coragem de regressar em vida às suas terras amadas: a Ribeira Grande, que o viu nascer, e Angra do Heroísmo, que o viu crescer. Os tempos eram cruelmente outros. Em 1948, quando os seus agora quatro companheiros de rua estavam a chegar à terra ou aproximavam-se do auge das suas carreiras, ele era ainda seminarista. Completaria o Curso Teológico em 1952 com a classificação de dezasseis valores.
O Homem inteiro: o Sacerdote e o Músico
Numa curta existência de cinquenta e três anos, a sua vida iria conhecer muito: iria dar voltas, reviravoltas e cambalhotas de todo o feitio. Entretanto, havia entrado para o Seminário no mês de Setembro do ano de 1941. Como tantos outros antes o haviam feito e depois o haveriam de fazer, decidira-se pelo sacerdócio por influência do padrinho, Prior Evaristo Carreiro Gouveia. O irmão Albano, mais novo um ano, foi também para o Seminário diocesano de Angra.
Completaria treze anos no primeiro dia de Outubro. Nascera no ano de 1928 na freguesia de Nossa Senhora da Estrela.[8] Apesar de uma nota biográfica dar a rua de Santa Luzia como sendo a do nascimento de Edmundo, perfilam-se duas outras candidatas: a rua de João d´Horta e rua de Santo André. Explico.[9] O Rol Quaresmal do ano de 1928, um ano antes de Edmundo nascer, sem indicar número de polícia, mostra os pais a residirem na rua de João d’Horta.[10] Não será certamente na casa n.º 34, pois aí, hoje residência paroquial, sabe-se por outras pesquisas, moraria D. Júlia Botelho. Por seu turno, o Rol Quaresmal do ano seguinte, 1929, ainda sem número de polícia, fogo número 459 da rua de Santo André, menciona Manuel d’Oliveira Machado, lojista, Maria Otília Frias de Melo Garcia, doméstica e Edmundo, filho do casal.[11]
Portanto, havendo Edmundo nascido entre a quaresma de 1928 e a de 1929, residindo os pais na de 1928 na rua de João d´Horta e na de 1929, na de Santo André, não é de excluir que tenha nascido na casa sem número do Largo de Santo André que faz canto com as ruas da Praça e Conde Jácome Correia, ou ter nascido em uma casa da rua de João d’Horta.
Onde exatamente na rua de João d’Horta? Os pais, segundo testemunhos coevos, moraram na casa da esquina da rua de João d´Horta (n.º 74) com uma das travessas de Santa Luzia. Será daí que vem a confusão com a rua de Santa Luzia?
Epílogo
Por que razão as sociedades recordam?
Sejamos francos, as comunidades devem eleger entre os seus cidadãos aqueles cuja memória querem perpetuar em ruas, praças, estátuas, edifícios, bibliotecas, museus, escolas. Não se tratará, a meu ver, de um exercício de canonização cívica em virtude de santidade, se fosse esse o requisito, certamente muitas das nossas ruas, escolas, praças e estátuas permaneceriam desgraçadamente anónimas, mas sim de homenagem.
No caso concreto destas cinco pessoas, que viveram entre nós, mais do que se justifica os esboços biográficos ou retratos suaves.
Não só para alimentar a natural, lícita e humana vaidade dos seus descendentes, mas, do ponto de vista da comunidade, sobretudo para fortalecer o sentido comunitário dos atuais e futuros cidadãos deste burgo.
A sua eleição reflete o que pensa quem os elegeu, e neste caso, repito, destaca-se o seu elevado espírito de maturidade cívica. Todos os cinco homenageados tiveram ao longo da sua vida, ou parte substancial dela, uma ligação muito forte e por vezes umbilical à Ribeira Grande, palco do seu sentir e agir. Até mesmo no caso do Dr. Edmundo, ainda que fosse necessário os seus antigos e devotados alunos lhe perpetuarem o nome no orfeão que ostenta o seu nome para que a terra despertasse para ele, ainda antes de a terra perceber e reconhecer a importância e a dimensão deste seu filho, ele sempre sentiu e aceitou a incontornável força telúrica das suas raízes: ‘Lá, vai haver festa!’ Terá ele dito, pouco antes de expirar.
[1] Já verbos como nadar, retornar, contornar, em ambas as modalidades do português, seguiriam a derivação regressiva para formação de substantivo (nado, retorno, contorno) e a regra [Vmov]-da ® Adj para formação de adjetivos. Portanto, mesmo a RFP descrita acima teria uma aplicação relativamente restrita também em PB.
[2] Muita da informação geral foi fornecida por familiares.
[3] AMRG, Rol Quaresmal, Conceição, Ribeira Grande, 1893: Rua de São Francisco
[4] A informação foi-me facultada pela família.
[5] Testemunho de D. Luísa Tavares, sua filha.
[6] Informação obtida junto de familiares.
[7] AMRG, Óbitos, lv. 13, 197-1983, fl. 88v.; Testemunho da esposa Dr.ª Elsa Andrade.
[8] AMRG, Batismos, 1928-1930, fl. 57v.; ACRCRG, Nascimentos, 1929.
[9] Saborosa nota biográfica da autoria do Dr. Manuel Francisco Aguiar, seu devotado aluno, que, pela sua beleza e importância, merecia quanto antes ser publicada.
[10] AMRG, Rol Quaresmal, Matriz de Nossa Senhora da Estrela, 1928.
[11] AMRG, Rol Quaresmal, Matriz de Nossa Senhora da Estrela, 1929.
[1] Já verbos como nadar, retornar, contornar, em ambas as modalidades do português, seguiriam a derivação regressiva para formação de substantivo (nado, retorno, contorno) e a regra [Vmov]-da ® Adj para formação de adjetivos. Portanto, mesmo a RFP descrita acima teria uma aplicação relativamente restrita também em PB.