Dia 26 de janeiro passou um ano de imensa saudade pela
partida da minha mulher, professora, pedagoga, autora e
vice-presidente dos nossos Colóquios da Lusofonia. No seu
espólio guardado ciosamente sem intervenção de olhares
estranhos por décadas, encontramos manuscritos vários que
enviamos à amiga e escritora ANABELA BRITO DE FREITAS
(ex-Mimoso) para melhor indagar sobre o seu conteúdo. Dentre
as inúmeras surpresas estava uma novela completa datada de
1976 quando a Helena tinha 21 anos incompletos e é dessa
obra que aqui damos conta (celebrando um ano de dolorosa
ausência) nas palavras da sua descobridora Anabela Freitas:
É difícil fazer a apresentação de uma obra como O Silêncio
da Paixão. Desde logo pelo meu envolvimento no texto,
envolvimento que durou meses. Mas seria sempre uma tarefa
hercúlea, sobretudo, porque esta novela abre as portas a
muitas leituras possíveis, porque é densa, porque nos
envolve e depois nos arrasta com ela. Daria um outro livro
falar na riqueza dos recursos a que a autora lança mão para
nos seduzir com eles.
A única tarefa fácil é a de dizer-vos do que fala o texto. A
autora fez isso por nós e incluiu o resumo que o encabeça e
que deve ter funcionado como um guia para a sua escrita.
Clara Viel, a artista que cantou através do mundo inteiro.
Aí está ela, na flor da vida, isolada em Joinville, no
Cotentin. As dunas, o mar cinzento e a solidão. Ninguém sabe
por que é que ela renunciou repetidamente à sua carreira,
abandonou a música, os teatros, fugindo cada vez para mais
longe.
Estranha, silenciosa. Como única testemunha daquilo que ela
parece procurar obstinadamente, um jovem. Para únicas
imagens – apenas rochedos, água e céu – estes clarões
dilacerantes das recordações. Berlim, o encontro com um
pintor, Eric, o amor que irradia a memória. Como única
ligação ao mundo exterior estas cartas chegadas de Praga
onde alguém a ama ainda.
Na lembrança tenaz, existe uma rotura. Fenda também na sua
arte. Uma cena que Clara Viel não consegue reconstituir.
Logo que ela se elevar para lá da doença, da alucinação,
descobrirá talvez a verdade, saberá por que é que a morte a
atrai tão fortemente.
O destino permite-lhe ainda tornar a ver Eric; por fim a
cena torna-se clara. O mar, a morte confundem-se.
A narração é levada num ritmo onde o desejo da nostalgia e a
nostalgia do desejo se alternam como a maré que cobre e
descobre esta sombra – enigmático amor.
«que cobre e descobre» – é exatamente este movimento de vai
vém, repetitivo, que, ao longo de toda ano vela envolve o
leitor, como se ele rolasse nesse cenário de areia e mar. O
uso predominante do presente do indicativo e as referências
constantes à paisagem marinha e às suas constantes mutações,
contribuem para essa sensação de identificação com a
protagonista. O leitor sente, por empatia, o sufoco e, logo,
o estado de saúde física e mental e toda a dimensão do
sofrimento da protagonista. Por outro lado, os momentos de
analepse na narrativa, a convocação do passado de Clara,
muito embora frequentes, são breves e entrecortados, porque
sempre O mar volta depressa, anelante. Esta omnipresença do
mar torna-se obsessiva e oprimente. Porque esse mar tudo
envolve, até mesmo o local que deveria ser o seu refúgio, a
casa, pois ele espreita, impõe-se: Por entre todas as
janelas.
A autora não perde a oportunidade de realçar a importância
que o mar tem. Seria incontornável, impossível, não falar do
mar. Por isso, fá-lo também graficamente. Assim, a espaços,
isola o sintagma “o mar” numa linha apenas, ora a meio da
linha, ora no início do parágrafo.
Na verdade, todos estes estratagemas preparam-nos para o fim
anunciado: a morte no seio do mar.
A própria protagonista é retratada nesse vaivém, como se
flutuasse sobre as ondas, balançando entre o amor de dois
homens – Gilles e Jiri – porém, sem que ela ceda, presa,
constante na sua paixão por Eric, o fiel da balança.
O mar domina todo o espaço cénico, pelo menos o da
realidade. Só o das memórias é que nem sempre o inclui, pois
esse é o tempo em que Clara ainda cantava, ainda se sentia
presa à vida.
E falar de mar é também falar do tempo, das fortes chuvadas,
do frio, das nuvens, não ao estilo de um quadro
impressionista, cheio de luz, em pinceladas rápidas, mas sim
de um quadro romântico, carregado, dramático. O tempo
atmosférico, sufocante e de mau agouro, também participa
desse ritmo binário e também ele serve de adjuvante ao
desfecho da ação:
A tempestade rebenta depressa com a queda de granizo. Depois
o silêncio. Novamente o granizo.
O cenário é demasiado grandioso, dominador:
Os cabelos, o rosto ensopados, Clara olha e pensa na sua
morte, talvez porque desejas se estar ao nível daquilo que
via.
É esse mar que preenche todas as horas de Clara. É dele que
agora ela se alimenta. Todos os seus sentidos são
bombardeados pela presença dele: a visão, o olfato, o tato,
o paladar e também a audição. Pois embora a músicas e já uma
referência constante, desde logo porque Clara era cantora
lírica, essa mesma música que preencheu a sua vida, acabou
por ser abandonada e substituída pelo mar, como confessa a
uma amiga que lhe pergunta se ela era feliz:
-… feliz? A minha família gostava de mim. Tinha o mar em
Joinville, os meus amigos, o piano…
- A música? E agora?
- O mar.
Mas, obviamente que a música, muito embora já não faça parte da vida atual de Clara, por vontade própria, porque abandonou a carreira, está presente ao longo de toda a novela. Durante a leitura nunca perdemos de vista o facto de a protagonista ser cantora lírica. Falar da música torna-se óbvio e contribui para a criação de um ambiente onírico muito sugestivo. A sua presença é poderosíssima no texto. A música funciona ainda como a banda sonora da narrativa, o pano de fundo que nos prepara para a tragédia que se avizinha. É o leitmotiv de toda a ação. É também ela que desperta as memórias, que liga a protagonista ao seu passado, que nos dá conta do seu estado de ânimo no presente.
Por isso, ela é devidamente escolhida. Nunca é uma referência inocente, porque vai sempre repercutir-se nos movimentos, nos sentimentos, nas memórias das personagens. Não são já as liderou as árias na voz de Clara quando ainda cantava nos palcos de toda a Europa, é a música gravada que dá voz à memória. Podemos perceber como essas escolhas implicaram, por parte da autora, um conhecimento aprofundado da música, pelo menos uma busca muito seletiva de trechos musicais, adaptados a cada circunstância. Assim,
A escolha de O Castelo de Barba Azul de Béla Bartók (Não conheço nada mais triste., afiança Gilles) pode ser entendida como uma alusão à inconstância amorosa de Eric e ao sofrimento que este causou nas mulheres rejeitadas;
Já o Erwartung de Arnold Schönberg, o drama da mulher que encontra o seu amado morto, que o acusa de ser infiel, mas que desespera porque não sabe como viver sem ele, é convocado insistentemente ao longo do texto, porque tem paralelismo com a vida da protagonista, sem bem que a morte de Eric não seja real, seja apenas a ausência dele;
O melodrama Pierrot lunaire (também de Schönberg) é recorrente, incluindo-se mesmo citações das líricas: (Am Hals einZöpfchen/ Wollüstigwirdsie que significa: «Ela está voluptuosa com essa trança ao redor do pescoço» ou Den Wein, den man mitAugentrinkt). A violência verbal, a controvérsia causada por esta peça abre-nos a porta para a luta interna das personagens. Há também um excerto de uma pauta de Il lamento de Ariana de Monteverdi, que será o seu adeus a Jiri.
Podemos acrescentar referências às Altenberg lieder de Berg, que deixam a protagonista desesperada, ou às pungentes lieder de Shumann. Ou às de Webern. Não faltam As Bodas de Fígaro que, quando ouvidas transportam a protagonista para o encontro com Jiri em Praga.
Curiosamente, a tragédia de Pelléas and Mélisande de Claude Debussy torna-se parte da ação, confunde-se com ela, é mais como se fosse tomada por um acontecimento real, paradigmático:
Ela fecha os olhos, deixa as mãos ao abandono. Sim, é tudo por causa de uma mentira, dessa necessidade de saber, enfim, – uma última vez – essa necessidade violenta e mórbida.
Da mesma maneira que Golaud atormentando Mélissande: “A verdade, preciso de saber a verdade!”.
Não admira a sua referência, pois, esta é também a ópera que liga Clara a Eric. Quase como uma premonição, este tinha pintado alguns quadros inspirado nela.
A música, sempre a música, ligando impressões, memórias: A música que chama em seu socorro transporta-a a Berlim, há doze anos.
Berlim em plena Guerra Fria, numa atmosfera política ambivalente, nesse limbo entre o Leste e o Ocidente. É neste espaço centro-europeu da Guerra Fria que as personagens do passado de Clara se movem.
Um dia, Clara caminhou até ao Muro. Homens, mulheres vestidos de cinzento, de verde sombrio, esperavam e não se sabia se eles ficavam lá, com todas as esperanças de ver chegar algum parente, amigo, filho, se pensavam penetrar nas ruas interditas ou se não chegavam a acreditar no Muro. Os projetores das sentinelas, à noite, revisitavam as fachadas estreitas, os palácios abandonados.
O ambiente soturno, ao pressão política contribuem também para adensar a intriga. Mas mais explícito ainda talvez sejam os sonhos premonitórios:
Houve durante a sua vida [de Clara] três sonhos premonitórios: a morte da mãe, o suicídio de Alain e um terceiro: a sua doença.
A sua paixão é então vista como uma doença, que lhe será fatal e que é anunciada inconscientemente, ou talvez não, por Eric.
«Quando nos amarmos demais, meu amor, matar-nos-emos juntos.». Eric falava, como se bebe, com embriaguez, sem pressentir o que poderia acontecer a Clara.
Esta quase sentença, ou promessa? Será mais tarde reiterada por Clara: - Se nós amamos demais, meu amor, matamo-nos juntos.
Mas Eric não estará com ela nesse momento. O amor dele tinha findado. Por isso, ela morre sozinha. A paixão de Clara e a traição de Eric tinham-na dominado totalmente.
Não tenho ilusões de que o que disse sobre esta obra estará sempre muito aquém do muito que se poderá ainda continuar a dizer. Por isso, o melhor tributo que se lhe poderá prestar será lê-la e saborear cada um.
Chrys Chrystello*
*Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713
MEEA-AJA (IFJ)