Lusofonografias, Ensaios pedagógico-literários de Luciano Pereira -Editora:  Calepinus Verlag: Tübingen por CHRYS CHRYSTELLO

 Entre as muitas coisas que não sei fazer contam-se escrever prefácios e apresentar livros. Não obstante esta assumida incapacidade de estabelecer conexões entre as sinapses cerebrais e a folha branca de papel, continuo a ser regularmente convidado para o fazer, não fruto da minha sabedoria, mas por qualquer razão obscura que os historiadores irão desvendar. Como pessoa de gostos simples, a minha ordenação das obras literárias oscila, quase sempre, entre um GOSTO ou NÃO GOSTO, raramente me escondendo atrás de umas cinquenta sombras de cinzento, hipócritas ou de mera cortesia. Dito isto, irei falar de tudo menos do livro que, para isso, temos na assistência quem o possa dissecar de mil e uma formas e feitios, classificando-o de forma rigorosa e científica, estabelecendo nexos causais e outros. Não falando do livro, per se, nem do editor cuja existência desconhecia até ao momento de ver o livro, resta-me falar do autor.

 Se bem que seja bem mais fácil dizer francamente se se gosta ou não das pessoas, se sentimos mais ou menos empatia ou antipatia, o caso do Luciano Pereira é paradigmático de uma amizade conivente e duradoura. Com efeito, ele é um dos mais antigos membros desta fraternidade cúmplice a que chamamos colóquios da lusofonia. Éramos bem mais jovens em novembro de 2002 quando a curiosidade o levou à Fundação Eng.º António de Almeida no Porto para assistir ao nascimento dos colóquios.

 Aparentemente o que viu foi de molde a impressioná-lo pois em 2003 estava, de novo, no anfiteatro Paulo Quintela em Bragança como presencial e em 2004 ganhou coragem para se apresentar com o tema A cultura e o imaginário Açoriano-Catarinense na obra literária de Franklin Cascaes. Nem eu conhecia os Açores, nem sonhava conhecê-los e menos ainda sabia dos elos umbilicais entre o estado brasileiro de Santa Catarina e os Açores. Mas ficou uma nota mental para aprender sobre o Franklin Cascaes e aquele rincão do Brasil. Em 2007 no 7º colóquio na Lagoa apresentou o trabalho Manuel de Paiva Boléo e a Cultura Açoriano-Catarinense. É este o texto de viragem que marca a minha apreciação extrema pelo seu trabalho. E passo a citar:

 “Não resisto eu a invocar uma das lendas paradigmáticas de nítida origem celta, documentada na obra de Franklin Cascaes, na ilha Terceira e no Norte de Portugal: As bruxas roubam a lancha baleeira de um pescador da ilha.

 “Comadre, eu estive num lugar muito longe, dentro da noite, e, às apalpadelas, dentro da escuridão, consegui recolher um punhado de areia e umas rosas, porém desconheço o lugar de sua origem. Já as mostrei a muita gente e ninguém, assim como eu mesmo, conseguiu identificá-las. Quando colocou os olhos por riba da areia e das rosas, suas faces enrubesceram, seus olhos se esgazearam e sua fala emudeceu. Recuperando-se, afirmou

– Compadre, a terra de origem deste punhado de areia e deste ramalhete de rosas é a índia. Eu aprendi na minha escola de iniciação à bruxaria que lá, nos Açores, na terra dos nossos antepassados, as bruxas também costumavam roubar embarcações e fazerem estas viagens extraordinárias entre as ilhas e a índia, em escassos minutos marcados pelos relógios do tempo. Também aqui as mulheres continuadoras dos elementos diabólicos do reino de Satanás, cujas chefes enfeixam em suas mãos os poderes emanados dele, praticam as mesmas peripécias. Eu, compadre, afirmo-lhe com convicção certa de que as suas vidas, naqueles momentos, estiveram guardadas no repositório das minhas mãos. A bruxa chefe, que comandava a embarcação, tinha plena certeza da presença real de sangue humano dentro da lancha e, de vez em quando, ela chamava a atenção de suas comandadas para que investigassem onde estava o elemento que o possuía. Mas eu procurei sempre com muita altivez e precisão bruxólica, atrai-las para pontos distantes que podiam atrapalhar nossa viagem, quais eram os cantares dos galos. Hoje o senhor vai saber com precisão que, dentro da sua embarcação, fazendo aquela viagem bruxólica entre a Ilha de Santa Catarina e a índia, estavam as mulheres bruxas mais respeitáveis, misteriosas, prepotentes e malignas que vivem o reino rubro do rei Anjo Lúcifer. Se o senhor não foi trucidado por elas, agradeça à minha presença na sua lancha, metamorfoseada em bruxa, sentada no banco de popa na frente da gaiuta, onde se achava escondido” (Cascaes, 1950, 73-77).

 

Mal sabia eu que esta e tantas outras passagens mágicas e bruxólicas deste trabalho eram premonitórias. Começara o Luciano nas suas apresentações por me colocar em contacto com lendas e tradições dos Açores e da sua décima ilha, o estado de Santa Catarina no Brasil. Vivia eu calmamente em Bragança, pensando que seria minha última paragem nesta circum-navegação que iniciei em setembro de 1973 ao ir para Timor, a que se seguiram depois Bali, Austrália, Macau e depois, definitivamente Austrália. Conhecia os extremos orientais do finado Império Português sem jamais vislumbrar necessidade ou razão de conhecer as suas franjas mais ocidentais plantadas no meio do Grande Mar Oceano, terra de Atlantes e de mitos, vulcões e terramotos. Bragança acabara de ser promovida a mátria, a segunda pátria era a Austrália, sendo a primeira Timor-Leste pois quando me preparava para ali regressar foi selvaticamente invadida e colonizada pelo império javanês da Indonésia.

  Mas o futuro é tudo menos o que antecipamos e em maio de 2005 a minha mulher Helena fica colocada numa escola dos Açores, que viemos conhecer em junho desse ano. Depois, criamos em 2006 um segundo colóquio anual dedicado à açorianidade que vim a descobrir através da tradução de autores açorianos, lendo as suas obras e conhecendo-os pessoalmente. Não faltou muito para que os colóquios tivessem a sua primeira saída para o estrangeiro que nos iria levar ao Brasil, a Brasília, São Paulo, Rio de janeiro e – por fim – Florianópolis, em Santa Catarina em março 2010. Com Vasco Pereira da Costa e outros autores fui conhecer as baías descritas nos textos do Luciano

 E passo a citar, de novo:

Havia um homem que era pescador e, quando chegava à calheta para deitar o barco ao mar, estava sempre alagado. Uma noite resolveu ir e foi vigiar para ver se apanhava a pessoa que andava com o barco. Escondeu-se dentro dele e botou uma serapilheira por cima de si. Dali a bocado grande, viu entrar duas raparigas e cada uma pegou no seu remo e foram a remar pelo mar fora. Chegaram à Índia, arrumaram o barco lá num canto e meteram por terra dentro. O homem escondido lá ficou. Não levou muito tempo. Elas no barco. Quando vinham de viagem, uma vira-se para a outra e diz assim: Rema para lá que é quase de manhã! – e a manhã já a luzir. E o homem dizia lá consigo:

-Ai se me dá a tosse, ai se me dá a tosse… Ele vinha abafado com a saca por cima de si mas nunca tossiu. Elas traziam três pedras brancas e umas vagens e, quando chegaram a terra, esqueceram-se delas dentro do barco. E o homem assim que as apanhou pelas costas, botou a mão às coisas e veio para cima. Foi mostrar aquilo aos amigos para provar a eles que tinha ido numa noite à Índia a mais as feiticeiras (Altares, Terceira - Açores)

Vi os ancoradouros daquelas barcas lendárias em mar calmo e melancólico, no Caminho dos Açores rumo a Santo António de Lisboa, vi as pedras antropomórficas em que se haviam transfigurado as bruxas, entendi as lendas que foram desde as ilhas açorianas até ao Atlântico sul e comecei a entender melhor que Santa Catarina era, de facto, uma décima ilha dos Açores.

 Entretanto, o Luciano ainda solteiro no Porto tinha-se tornado no primeiro casal da Lusofonia ao desposar a Zélia e fez questão de em 2008 nos dar a conhecer em Bragança o primeiro filho nascido no seio dos colóquios, o Santiago Lusofonia como nós sempre o designaremos.

 No 11º colóquio na Lagoa 2011 apresentou A Ilha No Imaginário Poético De Temática Açoriana. Depois seguiram-se mais temas da açorianidade, o seu livro das fábulas e tantos outros temas interessantes ao longo destes anos que tornam a sua escrita lávica em poesia e é disto que falo quando ele as decidiu juntar em livro que ora vem dar à estampa em Lusofonografias, Ensaios pedagógico-literários. As imagens que tem estado a passar são um mero testemunho da passagem do Luciano pelos nossos eventos. A mim nada mais me resta dizer a não ser leiam, deixem-se enlevar pela magia bruxólica da escrita do Luciano como eu me deixei. Digo isto não como um crítico nem apresentador desta obra, mas como um amigo, quase irmão, deste excelente contador de estórias que é o Luciano Pereira que merece ser lido e publicado mais vezes, em vez de permanecer dolente nas páginas das Atas, Anuários e Revistas destes nossos Colóquios da Lusofonia dos quais fará sempre parte integrante.

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